quinta-feira, 29 de julho de 2010

Mariângela Alves de Lima em crítica a "Rebu" (São Paulo, SP)


Paixão, rancor e ironia


Dois últimos dias para ver o ótimo exercício estético proposto pela peça Rebu

Crítica: Mariangela Alves de Lima - O Estado de S.Paulo

O turbilhão de paixões já havia se resignado às páginas policiais quando Nelson Rodrigues restaurou-lhe o prestígio artístico. Desde então, os dramaturgos brasileiros flertam com ciúmes assassinos, furores de amantes desprezados, negrume de fixações edipianas e tabus correlatos. São motivos que pulsam com maior ou menor evidência em qualquer forma narrativa que recorra a personagens - e abordá-los de modo franco seria resultado inevitável da observação direta das situações e das pessoas. No século passado, contudo, a ciência escarafunchou a psique com tal zelo que a incontinência emocional perdeu o caráter de transgressão moral, pecado ou até mesmo crime. Resumindo, todos desejamos esganar os rivais, mas quem o faz conta com uma certa tolerância depois que passamos a compreender como doença a exaltação passional.

Em razão desse viés analítico, os abismos da alma, embora fascinantes, perderam o direito à representação trágica. É apenas com certo cinismo, por vezes com o meio sorriso da desconfiança e outras vezes com o traço forte do grotesco, que se permite sua entrada em cena. Partindo desse equilíbrio instável entre atração e recusa da matéria passional, o grupo carioca Teatro Independente faz um elaborado exercício estético. Rebu, texto de Jô Bilac em que duas mulheres travam uma batalha ferocíssima na disputa por um homem, enquanto este, por sua vez, deixa-se aprisionar por uma quarta personagem da trama, segue o curso sinuoso dessas manifestações de amor e rancor, com velocidade e intensidade apropriadas.

No desenho das cenas é que se introduz o grão de sal da estilização, a dose de exagero bem medida para que não se perca o tema fascinante do dilaceramento passional e, ao mesmo tempo, a linguagem ocupe o primeiro plano da cena. Uma vez que não é mais possível restaurar a dimensão trágica desses tortuosos novelos familiares, o espetáculo incorpora de modo irônico a memória de convenções teatrais extraídas da iconografia do melodrama e da ópera, ambos refúgios tradicionais do amor fulminante e do desespero mortífero.

Há outras fontes de referência neste espetáculo dirigido por Vinícius Arneiro e uma delas é, sem dúvida, o extraordinário trabalho da Cia. dos Atores evidenciado, entre outras coisas, pela participação de Marcelo Olinto na concepção dos figurinos. Assim como os dramaturgos têm em Nelson Rodrigues seu gênio tutelar, é justo que os grupos novos se inspirem nas ideias e procedimentos de um dos melhores conjuntos do teatro brasileiro. De qualquer modo, o mesmo mote - um tratamento do clichê amalgamando o cômico ao sublime - realiza-se de forma original.

As interpretações evoluem sobre um palco pequeno bem próximo dos espectadores e sugerem, de início, o universo surreal do inconsciente ou o "mítico" rodriguiano. A repetição de gestos, a quebra brusca de movimentos e, sobretudo, o exibicionismo com que as personagens disputam a atenção corroem, por meio da comicidade, a empatia com os desvarios amorosos das figuras em cena. Ao mesmo tempo, o substrato cômico é emoldurado por reminiscência de outro código estético, ideal de beleza arcaico que reservava a categoria do sublime para ímpetos desenfreados.

Para essa tarefa dúbia de trafegar entre a graça irônica e a evocação de outras matrizes do teatro, os atores utilizam o arsenal técnico de diferentes tendências. Vozes femininas ressoam graves, quase soturnas, e a dicção caprichada, com vogais e consoantes nítidas, imita a elocução cerimoniosa dos dramas cultos.

Também as posturas são hieráticas, baseadas em imagens consagradas dos bons modos e as reversões cômicas entram pelas frestas, rápidas, sem destruir inteiramente a gravidade das personagens. Sempre mantendo uma distância prudente do simples deboche, a direção do espetáculo garante desse modo o impacto da quarta personagem da trama. Fosse uma figura lançada ao acaso em meio ao tumulto e à desordem da farsa grotesca, a misteriosa personagem seria uma piada entre outras.

2 comentários:

  1. Cara Mariângela,

    Sua crítica é de uma exatidão impressionante e de tão deleitosa leitura quanto à peça em questão. Fico feliz pelos talentosos envolvidos no espetáculo e pela própria crítica teatral que, aqui, adquire corpo do tamanho que sempre deveria ter. Um respiro de puro teatro [a peça, a crítica].

    Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. MEU DEUS CADÊ A mARIANA?!!!
    VOLTA A RECIFE, QUERIDA!
    PRECISAMOS DESSA LUCIDEZ FEROZ E DOCE!
    (MICHELOTTO, DO FUNDO DOS TEMPOS)

    ResponderExcluir