segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Nova peça de Edward Albee estreia e

Edward Albee

Autor de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?" tem nova peça montada em São Paulo


LUCAS NEVES / DE SÃO PAULO

Não venha falar de sonho americano para Edward Albee. Aos 82, o dramaturgo ainda prefere perturbar o sono americano com peças que desconstroem a felicidade conjugal de fachada, prospectam sem pudores as pulsões sexuais de gente comum e fazem personagens contracenar com a morte --seja a perspectiva dela a pairar sobre a cena, seja a dita cuja encarnada.

As opções temáticas fazem do teatro de Albee, há mais de 50 anos, um show de pirofagia em que quase tudo é permitido. Para atiçar chamas, vale desde um arsenal de imagens que oscilam entre o sádico e o grotesco (circuncisão reversa, mastectomia voluntária, estupro anal...) até reminiscências da juventude, marcada por um relacionamento frio com os pais adotivos.

Não espanta que as mães de sua lavra sejam quase sempre figuras odiosas.

No Brasil, suas obras são montadas desde o começo dos anos 60. Em 1995, José Possi Neto dirigiu encenação bem recebida de "Três Mulheres Altas". Quatro anos anos depois, Walmor Chagas e Tônia Carrero buscavam "Um Equilíbrio Delicado" --estado que o casal beligerante vivido por Marieta Severo e Marco Nanini em "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?" (2000) nem sonharia alcançar.

Depois de José Wilker se apaixonar por um ruminante em "A Cabra Ou Quem É Sylvia?" (2008), Karin Rodrigues interpreta a personagem-título de "A Senhora de Dubuque", em cartaz a partir do dia 29 de janeiro, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. A morte mais uma vez tem os refletores voltados para si. E nada mais diremos aqui.

Em entrevista por telefone à Folha, Albee advoga por um teatro que configure "um ato de agressão" e não se acanhe em fazer as "perguntas difíceis", ainda que isso irrite grande parte do público --que busca "um entretenimento seguro e amigável".

Para ele, a arte "não tem de nos deixar felizes, mas sim mais conscientes de nossos sentimentos e valores". Valores que, no teatro ideal imaginado pelo americano, devem ser postos em xeque, jamais reafirmados.

Albee fala também da influência de sua biografia sobre a ficção que ele produz e da frágil formação intelectual do espectador médio de teatro na América de hoje.

Leia a seguir os principais trechos da conversa com o escritor, ganhador de três prêmios Pulitzer e igual número de Tonys.

Mary Altaffer/Associated Press

*

Folha - A morte é uma presença marcante e até assume forma humana em peças de sua autoria, como "Três Mulheres Altas" e "A Senhora de Dubuque". Por que o senhor acredita que ela seja um mote tão forte para o teatro?

Edward Albee - Só há duas coisas que realmente importam. Os dois grandes eventos na vida de qualquer pessoa são seu nascimento e sua morte. E então você escreve sobre esse parêntese, sobre tudo o que acontece nesse intervalo. Você não pode escrever sobre seu nascimento porque não se lembra dele.

Mas pode escrever sobre a morte, porque obviamente não tem memórias dela, mas espera por isso. Há vários tipos de morte. Muitas das minhas peças são sobre pessoas que estão vivas, mas morreram emocional e intelectualmente muito tempo atrás. Você pode estar morto no íntimo e ainda vivo.

As notícias que nos chegam sobre a cena americana incluem a estreia de uma adaptação musical de "Homem-Aranha" orçada em US$ 65 milhões (R$ 109,8 mi) e um número crescente de estrelas hollywoodianas buscando na Broadway legitimação. Que margem esse quadro deixa para provocação e tomada de riscos?

A maioria das pessoas quer um entretenimento seguro e amigável. Não desejam que seja um ato de agressão. E quase toda arte, em seu melhor, é um ato de agressão contra o status quo. Ou seja: está ali para levantar questões, não para fornecer respostas fáceis, simples.

Mas se você faz perguntas difíceis, irrita muita gente. Essa é a função da arte, entretanto. Se ela não lhe saca do conforto, não é arte. O problema é que boa parte das pessoas tem preguiça intelectual.

De que maneira a arte pode ser a um só tempo agressiva e divertida?

Atraente é uma palavra perigosa, significa que as pessoas vão gostar. O que a arte precisa é ser mobilizadora de nossa mente e de nossas emoções. Ela não tem de nos deixar felizes, mas sim mais conscientes de nossos valores. E deve nos levar a interrogar se estamos dando conta ou não de nossas responsabilidades. Não entendo como alguém pode querer ir ao teatro só para ver atores voando suspensos por fios [referência a "Homem-Aranha"]. Vá ao circo, então! O teatro deve mobilizar o intelecto e o olhar.

Como o sr. vê o jogo de forças entre o teatro que chama de comercial e o de vocação mais experimental, hoje, nos Estados Unidos?

Grande parte das obras que são produzidas com um olhar no lucro que voltará para o investidor tende a ser uma perda de tempo. Por outro lado, grande parte dos trabalhos feitos só de amor ao teatro, ainda que não seja rentável, costuma ter mais valor. Esses são feitos em teatros pequenos, não comerciais, geralmente com temporadas mais curtas do que a porcaria comercial.

E por que isso acontece?

Porque as pessoas não querem ser incomodadas quando vão ao teatro. Anseiam por ter seus valores reafirmados --se é que se chega a discutir valores em cena. Não esperam vê-los questionados. Não estão ali para ser perturbadas. Querem perder tempo e estão dispostas a gastar muito dinheiro para isso.

O sr. é, então, pessimista em relação ao futuro do teatro?

O único problema da democracia é que você tem o que quer, em vez daquilo que você deveria querer. Numa democracia, se você é bem educado, pode tentar alcançar aquilo que deveria querer. Mas tem de ser instruído para fazer a democracia funcionar e para querer um teatro que faça algo útil.

Quando eu ia à escola, tinha uma classe de formação cívica, em que aprendia como o governo trabalhava e o que significava um ato político. Não se ensina mais isso na América. Também tive aulas de música, literatura e artes visuais. Hoje, elas não são consideradas importantes. As preferências das plateias são ditadas pelo pouco que aprendem. Se o cardápio ensinado fosse mais amplo, a gama de interesses seria mais diversificada.

Diante desse quadro, por que insiste em abordar temas tabu, como bestialismo (em "A Cabra"), mastectomia voluntária e circuncisão reversa (ambas em "Homelife")?

Porque isso representa o que sou, o que me interessa. É sobre isso que acredito que as pessoas deveriam refletir.

Mas esses temas ainda são capazes de ruborizar a plateia, tirá-la da zona de conforto?

As pessoas prestam atenção de um jeito diferente quando estão diante de algo que é vendido como arte.

Já foi sugerido que o sr. se vale fartamente de sua biografia para criar peças. As mães de seu teatro seriam variações da figura de sua mãe adotiva, com quem o sr. mantinha uma relação difícil. Como equilibra realidade e ficção?

Estou limitado pelas fronteiras da minha imaginação. Escrevo o que consigo imaginar. Mas não limito a minha escrita a fatos que tenham acontecido comigo, porque não penso ser um objeto teatral tão interessante assim. Me considero uma pessoa interessante, mas não um tema próprio para uma peça.

Qual a diferença entre ser uma coisa e a outra?

Para que a história de alguém se preste ao teatro, suas ações têm de fazer sentido em termos dramáticos, não apenas intelectuais. Senão você transforma uma vida chata numa peça idem. Não consigo imaginar uma peça muito boa sobre [o filósofo alemão] Immanuel Kant, por exemplo.

Em suas peças, surge com frequência um elemento "intruso", alguém que vem de fora do cenário principal para (às vezes à própria revelia) derrubar máscaras sociais, revelar hipocrisias. Como o jovem casal convidado pelos protagonistas de "Virginia Woolf", ou o par e a filha visitantes de "Um Equilíbrio Delicado". O inferno são os outros?

Dramaturgia se apoia em conflitos emocionais, físicos, psicológicos ou políticos. E se você tem um grupo de pessoas que se conhece bem, está muito feliz e não tem sobre o que falar, não há conflito. O que você tem em mãos nesse caso é televisão.

Mas não dizem que a televisão americana vive uma nova era de ouro, com enredos provocativos, personagens bem construídos?

Por "era de ouro", querem dizer um período muito rentável. Só vejo programas informativos, que possam me ensinar algo. Gosto daqueles que tratam de animais, ciência, o cérebro. A minha leitura também segue essa mesma inclinação.

E peças, o sr. lê?

Leio porque quero saber o que está acontecendo naquela história. Se vejo uma montagem sem antes ter lido o texto, não tenho a certeza de estar assistindo à peça que o dramaturgo imaginou.

Há uma hierarquia que deve ser respeitada, que determina que o texto venha antes, e a sua interpretação, depois. Essa deve apenas reforçar o que o autor concebeu.

Em duas ocasiões, senti que isso não estava acontecendo, e o resultado foi horrível. Mas não quero falar sobre isso. Você tem de ser forte para garantir que a sua visão é o que a plateia vai receber, porque às vezes tentam abrandá-la, facilitá-la, torná-la menos perturbadora, mais digestiva. Diretores às vezes fazem isso, seguindo comandos de quem está colocando dinheiro na produção.

O sr. dá aulas na Universidade de Houston. Como é o contato com grupos de jovens dramaturgos?

Ensino porque aprendo ao fazê-lo. Sou muito egoísta. Se não existisse essa via de mão dupla, não funcionaria para mim. Sempre digo aos alunos: "Escrevam a primeira peça de todos os tempos. Inventem a forma, a estrutura, a ideia". Toda arte é reinvenção, não repetição. Arte ruim é repetição. É simples assim.

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