Entrevista com Aderbal Freire-Filho
Eduardo Carvalho
Um homem de teatroQualquer descrição que se queira fazer ou titulação que se queira dar a Aderbal Freire Filho pode ser resumida em quatro palavras: um homem de teatro. Sua busca constante por novas formas de encenação teatral já o levaram a montar espetáculos tanto em teatros convencionais como na rua, em ônibus circulando pela cidade e até mesmo no canteiro subterrâneo de obras do metrô carioca. Um dos diretores mais requisitados por quem se interessa em fazer um teatro inovador, atualmente ele divide seu tempo entre Rio e São Paulo, dirigindo e sempre em busca de novos caminhos. Em meio a essa correria, ele encontrou tempo para responder, por e-mail, a nossas indagações.
De Sófocles a Beckett, muito mudou no teatro. O que permaneceu? O que permanecerá?
O teatro é o mesmo e mudou muito. Quer dizer, na sua essência o teatro continua sendo um grupo de pessoas que fingem que são outras diante de uma platéia que finge acreditar, para usar uma definição do Borges. Ou seja, esse é o jogo, a regra básica do jogo. Mas a partir daí o teatro mudou muito e não pára de mudar, nem vai parar. Mudaram os lugares onde se faz teatro, que também são chamados de teatros. Mudaram as estruturas das peças: das tragédias e dos coros até o drama burguês, até o teatro épico de Brecht e a todas as vias pós-becketianas da dramaturgia contemporânea. Mudaram as relações entre o autor e a cena, e dá pra resumir só com os dois autores que você cita: do Sófocles, que escrevia e encenava suas peças, ao Beckett, que escreve para que outro encene (e é um bom exemplo, pois Beckett soltou esse outro pedaço do seu corpo com dor, tanto que fica "encenando" suas peças em rigorosas didascálias). [Na Grécia antiga, conjunto ordenado de preceitos e instruções relativos à representação teatral - N. da R.] E falo só do teatro ocidental, de uma parte dele, não estou falando das ruas, das feiras. A história do teatro, como a do homem, é uma longa história de mudanças. E, como a do homem, de permanência.
Mas penso que nunca o teatro mudou tanto quanto no século 20, quando surgem as formas gravadas de representação dramática, quando nasce o cinema, especialmente. Digo no século 20 porque o pacote fechado só fica pronto em 1929, ano do primeiro filme falado. Para poder raciocinar, vamos chamar o cinema de teatro industrial, o teleteatro de teatro eletrônico e o teatro ao vivo, o teatro, enfim, de teatro histórico. Pois bem, o jogo agora pode ser jogado no teatro industrial, eletrônico e histórico. No tempo de Beckett, o nosso tempo, o teatro, enfim, é só um dos jeitos de jogar o jogo, que pode ser jogado no cinema e na televisão. Essa redução tem graves implicações negativas no mercado do teatro ao vivo, que perde espaço, importância comercial, social. Mas, em compensação, tem grandes implicações positivas para a arte teatral. O teatro amplia sua poética e aqui sou ainda mais pessoal nessa pequena história. Liberado pelo cinema da criação de novas realidades, o teatro passa a contar com uma ilusão de natureza diferente. A platéia do cinema ¿esquece¿ que finge acreditar, ela embarca numa nova realidade. A platéia do teatro joga, entra e sai da fantasia, é cúmplice, parceira, jogadora, artista. E ao teatro nada mais é impossível.
Em um espetáculo, o texto é tudo, quase tudo, ou quanto?
Dizer que o texto é tudo no espetáculo é construir uma frase absurda. Se o texto fosse tudo não haveria espetáculo. Claro, entende-se como uma força de expressão, para ressaltar a importância, a prevalência do texto sobre os outros elementos do espetáculo. Mas, mesmo assim, se eu tivesse que escolher um elemento destacado do espetáculo, escolheria o ator e diria que o ator é tudo em um espetáculo. E também posso dizer que o melhor texto do mundo em uma má encenação é insuportável. Ou seja, um espetáculo verdadeiramente bom é uma reunião de um bom texto, com uma boa encenação e bons atores. A questão é que o teatro é uma arte composta, múltipla. Muitos artistas criam o produto teatro, o autor, os atores, o encenador, etc. Teatro é o resultado, não é uma das partes, nem mesmo o texto.
Quando se diz que o teatro de Nelson Rodrigues é excelente, deve-se entender que ele escreveu peças de teatro que podem vir a ser bons espetáculos, mas nem sempre serão. Excelentes de ler, alguém dirá. Olha, o teatro tem poucos leitores e isso não é um fenômeno editorial, uma coisa sem explicação, má-vontade dos editores que não publicam peças teatrais. Quem gosta de ler teatro são os artistas de teatro. Pode ser que mais alguém goste, mas, em geral, se você vai ler uma história, você quer que te contem a história inteira, não quer saber só o que dizem os personagens. A comparação com o cinema ajuda a entender: há roteiros excelentes, brilhantes, mas quem quer ler roteiro? Você quer ver o filme. A dramaturgia está no texto e além do texto. Tudo parte de uma separação original, rasga-se em dois o autor-encenador grego e chega-se ao que é hoje mais comum, o encenador (e aqui esse nome deixa de ter qualquer pedantismo) e o autor, duas pessoas. A famosa frase que se atribui a alguns encenadores, "prefiro encenar autores mortos", fala dos conflitos entre esses dois artistas que vão pintar juntos um mesmo quadro. A partir dessa frase posso dizer muitas coisas. Que os autores mortos, obviamente, só existirão (ou seja, suas peças só serão teatro de novo) se existirem encenadores. Que uma encenação rasa, aparentemente fiel, pode resultar num péssimo espetáculo e o autor perceberá isso. E perceberá também que uma encenação rica, que explorou profundamente as possibilidades e a poética do palco, é muito boa e muito fiel. Que um bom espetáculo acontece quando o encenador procura entender profundamente o texto e usa com liberdade os recursos da cena para expressá-lo. E, finalmente, que eu prefiro encenar autores vivos. Quando fiz Tio Vânia sofria todo dia porque sabia que Tchekhov não ia ver o espetáculo, e hoje, todo dia ainda tenho a esperança de que William venha ver o nosso Hamlet.
Então, em Tiradentes, a cada espectador foi oferecida apenas uma sexta parte do texto?
Tiradentes oferecia o texto todo a todos os espectadores, mudava a ordem das cenas. Lembrando para quem não sabe do que estamos falando: Tiradentes foi um espetáculo que fiz no começo dos anos 90, com texto do Carlos Eduardo Novaes e meu, apresentado só aos domingos, com cenas em vários lugares do Rio de Janeiro. Seis ônibus levavam o público, duas caravanas de três ônibus cada, para os lugares onde ocorriam as cenas: o Museu Histórico, o Paço Imperial, o Palácio do Catete e um subterrâneo perto da Candelária, no prédio da Associação Comercial. Em cada ônibus, uma atriz. O único texto que era só para um grupo de espectadores era o dessa atriz, cada atriz uma personagem da vida de Tiradentes, falando dele. Tudo o mais era visto por todo público. Só que as quatro primeiras cenas do espetáculo, ou seja, as que eram apresentadas naqueles cenários que citei, eram vistas em ordens diferentes pelas duas caravanas. Uma via na ordem direta, cronológica (conspiração, prisão, sonho e condenação) e a outra em ordem inversa, começando pela condenação e terminando pela conspiração. Tudo bem, são modos de contar uma história, tanto a ordem direta, como a partir do final, em flashback. O elenco, na verdade um elenco em cada um dos cenários, fazia a cena duas vezes, uma vez para cada caravana de espectadores. Depois, as duas caravanas, os seis ônibus, se juntavam no Largo da Carioca e todos os atores, todos os elencos e todos os espectadores estavam juntos para as cenas finais, primeiro no Largo, depois numa passeata pela Rua da Carioca e, finalmente, para o enforcamento na Praça Tiradentes.
O que é o romance-em-cena?
Tenho um projeto de escrever a "teoria" do romance-em-cena e publicar esse livro. Ou seja, acho que pra responder a sua pergunta preciso de algumas páginas. Bom, vou resumir. Como sou leitor de romances, li alguns romances com vontade de levá-los para o palco. Claro, podia fazer uma adaptação. Mas a vontade que eu tinha era de levar o romance, não uma peça adaptada daquele romance, descobrir a teatralidade do romance.
Parênteses: muito do que se diz da relação da palavra com a cena é cheio de mal-entendidos. Por exemplo, quando eu disse que o texto não é tudo, pode alguém deduzir que eu sou um dos que não gostam de textos de teatro, que fazem ou querem fazer teatro sem palavras. Todo o contrário, sou fanático por literatura, um devoto da palavra. Dou inclusive uma interpretação pessoal à aversão do Artaud [Antonin Artaud - poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês - N. da R.] por literatura no teatro, dizendo que ele combatia a tendência de certo teatro a sublinhar o valor literário do que os personagens dizem, a declamar.
No principio é a ação, como corrigiu Goethe. As palavras são belas como conseqüência, não se o ator tentar me dizer que elas são belas. Quando falo da importância da encenação para o espetáculo, falo a favor do texto, pois sem uma boa encenação a palavra tende a perder sua qualidade. Valorizar a encenação é defender a palavra, não combatê-la. Então, eu queria colocar em cena o romance, o sabor das descrições, o olhar do narrador... E queria transformar tudo em ação presente, em teatro, enfim, pois o romance é passado e o drama é presente. O romance-em-cena é a concretização dessa vontade. Nos primeiros tempos, para defini-lo, eu dizia que era um romance levado ao palco sem adaptação. Agora prefiro dizer que é um romance levado ao palco com uma adaptação absoluta. Não faço antes uma passagem da forma narrativa para a dialógica, nem invento cenas que não estão no romance, acrescento diálogos, etc. Nada disso. O material é aquele. Porque, então, a adaptação é absoluta? Primeiro porque transforma o que é narrativo, passado, em dramático, presente, o que é narração em ação. Já dá uma volta. Depois, porque pra fazer isso é preciso descobrir dentro do romance uma dramaturgia, que existe ali dentro, atuar como um decifrador que tenta descobrir, revelar uma língua invisível. O Alcione Araújo, quando viu o Púcaro Búlgaro, por exemplo, fez um comentário que traduz isso perfeitamente: ele me disse que alguém que não soubesse dos antecedentes, ao ver o espetáculo, ia jurar que o texto tinha sido escrito como teatro. E, no entanto, os atores falavam em terceira pessoa, nenhuma palavra do romance tinha sido mudada e, acredito, quem lê o romance o Púcaro Búlgaro não imagina como ele possa ser levado ao palco.
O que o romance-em-cena faz é extrair a dramaturgia oculta no texto, escolher personagens que serão postos em cena, situações, lugares, uns sim e outros não. Enfim, escreve-se uma peça de teatro dentro de um romance, andando pelos labirintos que constroem essa outra obra dentro daquela, como Borges imagina a leitura de profecias nas manchas da pele de um tigre. Ou como na anedota do escultor que tira tudo que não é elefante da pedra para esculpir um elefante, tiramos o que não é a peça e encontramos a peça dentro do romance. É um trabalho simultâneo de encenação e dramaturgia. O ator muitas vezes fala em terceira pessoa, mas atua sempre em primeira pessoa, não é uma peça em que o ator diz fulano faz isso e depois faz. Enfim, o romance-em-cena é o jogo da ilusão mais aberto, é e não é ao mesmo tempo. Bom, isso é só o começo, não vai dar pra dizer tudo. Leia o livro, se ele um dia existir. E se não, não importa, passou, foi teatro também.
Você continua sem ter televisão em casa? Continua sem pensar em trabalhar para a telinha ou para o cinema?
Eu não tive televisão durante todos os anos 70. Depois aluguei uma pra me acostumar e finalmente, aí pelo meio dos anos 80, comprei uma. Mas há cerca de cinco anos moro de novo numa casa sem televisão. Comprei torradeira, microondas, telefone, geladeira, mas aparelho de TV não me interessou. Bom, o errado sou eu que perco a parte da história que vem por aí. E como vou trabalhar pra ela, se não sei nem ver? Fazer então... Perdi esse bonde, agora é tarde, não tenho mais idade pra aprender. Já cinema, estou sempre sonhando em fazer. Tenho um projeto de filmar Molero, [O que Diz Molero - livro do escritor português Dinis Machado, adaptado e dirigido por Aderbal em 2003 - N. da R.] tenho outros planos, já escrevi roteiros e, embora tarde, comecei bem uma carreira de ator de cinema em Juventude, filme do Domingos de Oliveira que adorei fazer, com ele e o Paulo José.
Desde O Cordão Umbilical, em 1972, até hoje, você já encenou 80 espetáculos, o que dá uma média de mais de dois por ano. Considerando os tempos necessários para pesquisa e ensaios, sobra algum para mais alguma coisa? Segue ensinando?
Passei a minha vida dentro de teatros. Já me aconteceu de mais de uma vez, num palco vazio, depois de um ensaio, sozinho, me perguntar se valeu a pena. Um teatro vazio, depois da meia-noite, é pura metafísica. Outras vezes aproveito a paz do teatro vazio pra lembrar, só pra lembrar. Ou pra querer entender. Ou as duas coisas. Como é que eu vim parar aqui, nessa vida aventureira, de um teatro a outro? Já trabalhei em muitos teatros que já fecharam, já fui o primeiro ocupante de alguns teatros novos... Outras vezes estou sozinho na platéia, os atores no palco, só eu na platéia, rodeado de poltronas vazias. Penso que essas poltronas vão ser ocupadas e quando eles chegarem, os ocupantes dessas poltronas, eu vou sair daqui pra minha caverna de diretor de teatro, de fantasma. Mas nos ensaios, aqui é minha casa. Subo ao palco, falo com os atores, desço, assisto, falo de lá, subo outra vez... E esse é meu caminho, do palco para a platéia e outra vez para o palco. O tempo que sobra é doido também, porque nunca é regular, nada é rotineiro. E pra aproveitar esse tempo raro deixei de dar aulas, pedi demissão até da universidade pouco tempo antes de chegar a aposentadoria, um impulso, a hora é essa.
Desses 80 espetáculos, é possível destacar o que resultou mais satisfatório para você?
Na verdade já são mais de 80, devo estar beirando os 100. Tenho saudades de muitos espetáculos, nem cito, porque são tantas saudades. Com cada um aprendi alguma coisa, experimentei outro salto mortal, descobri mais algum mistério do misterioso teatro. E gosto dos espetáculos que ainda são fogueiras acesas, ainda estão ardendo, que ainda não viraram cinza, nesse momento As Centenárias, O Púcaro Búlgaro, A Ordem do Mundo e Hamlet. Imagino o impossível, mostrá-los no mesmo teatro, seguidos, um festival, como se faz com o cinema de um diretor. Reveillon, A Morte de Danton, Gardel, Soroco, A mulher Carioca, Turandot, Casa de Boneca, Disco Voador, Tio Vânia, Sonata, Luzes de Bohemia, As Fenícias, Molero, uns títulos, tantos mais...
Revista SESC Rio - Outubro/2008
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