segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Conversa com Gabriel Villela

Gabriel Villela

NA ESTRADA COM GABRIEL VILLELA


Acompanhamos o diretor em Natal, onde mostrou ‘Calígula’, que chega ao Rio esta semana, e prepara a montagem de ‘Ricardo III’

Luiz Felipe Reis

portão de ferro desliza aos poucos para cima, e as primeiras notas de um clarinete chegam à calçada de uma pequena avenida de paralelepípedos, ladeada por casas de um pavimento e pequenas árvores no canteiro central. Ali, a poucos minutos do centro de Natal, no Rio Grande do Norte, um pequeno prédio de concreto é chamado de barracão. E, do lado de dentro, cerca de oito músicos fazem do espaço um laboratório de sonoridades, expulsando notas de instrumentos de sopro e percussão. Metidos em trajes que unem uma atmosfera de cabaré com a cultura circense, preenchem o lugar de cor e timbres, acompanhando uma sinuosa melodia embalada ao piano. Aos primeiros versos, o que era familiar fica claro, e a tal melodia, de “Bohemian rhapsody”, do Queen, ganha corpo.

— Isso está lindo demais — comenta o diretor teatral Gabriel Villela.

Sentado diante de uma mesa de reuniões, no segundo andar da nova sede do grupo potiguar Clowns de Shakespeare, ele está há apenas três dias no lugar em que passará os próximos três meses. Ao lado do diretor residente do grupo, Fernando Yamamoto, Villela trata dos mínimos detalhes de uma adaptação de “Ricardo III” que mescla cultura cigana e atmosfera agreste, além de antigas e novas tradições anglo-saxãs, como o rock.

— Estamos na etapa final de um processo que começou há dois anos. É a hora de cuidar da preparação corporal, musical, da adaptação dramatúrgica, da criação do figurino, do cenário e do levantamento das cenas em si. Ter o Gabriel aqui é certeza de um cuidado total com tudo — explica Yamamoto, que traz ao Rio outro espetáculo de sua trupe, “O capitão e a sereia”, entre os dias 5 e 8 de agosto, na Caixa Cultural. — A ideia dele é associar questões da Inglaterra elisabetana e contemporânea, com uma pegada rock. Vamos misturar isso com a cultura do sertão nordestino.

Já no andar de baixo, Gabriel espalha tintas e pincéis sobre um grande compensado de madeira, maquia, veste e aconselha os atores, confere pedrarias e examina os cortes que compõem o figurino manufaturado por ele, a partir de tecidos trazidos de suas muitas viagens a pontos da Europa e da África.

— Nossa mãe era bordadeira, e bastava ela sair da mesa da sala para a gente correr para cima das peças. Gabriel sempre foi muito habilidoso e faz questão de assinar os figurinos de todas as montagens — conta Giovanna Villela, irmã e parceira de trabalho.

Após comandar um pequeno pot-pourri de pérolas cunhadas por Beatles, The Doors e Queen, Gabriel se apressa. A noite cai e ele tem compromisso. Dali a poucos minutos, está agitado nos bastidores — entre a coxia e o camarim — do centenário Teatro Alberto Maranhão. Há uma semana, a cidade recebia “Calígula”, produção que traz Thiago Lacerda como o protagonista do clássico cunhado pelo franco-argelino Albert Camus.

A montagem, que aterrissa no Rio a partir da próxima sexta-feira, no Sesc Ginástico, é um antigo sonho do diretor mineiro, traçado quando galgava seus primeiros passos, como aluno da graduação de Artes Cênicas da USP, nos anos 80. “Calígula” é a terceira face de uma trilogia niilista, iniciada com “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, e “Leonce e Lena”, do dramaturgo alemão Karl Georg Büchner (1813-1837).

— O que me interessa é a proposta de Camus: a redução da vida humana ao nada. A forma como ele coloca a inutilidade da vida. É a metafisica do Camus que nos interessa como estudo. Mas não sou dado a teorias, e acho que é um prazer interno e pessoal que move essa montagem. É a escolha de um bom texto, a possibilidade de realização cênica de um prazer estético — diz Gabriel.

Escrito em 1942, o texto narra a saga de Gaius Caesar Germanicus, ou Calígula, o terceiro imperador romano, que constata o absurdo da existência após sofrer a perda de sua irmã e amante, Drusilla. Obcecado pelo impossível — alcançar a lua, a felicidade ou a vida eterna —, instaura um novo código de conduta para seus dominados, numa tentativa de exercer, por meio de assassinatos e da perversão de valores estabelecidos, uma liberdade que, aos poucos, se mostra inviável. Afamado pela extravagância, a crueldade e a carga sexual que pululam os atos e os pensamentos de Calígula, sob as mãos de Gabriel o clássico não carrega as tintas pornográficas que marcaram a adaptação cinematográfica conduzida por Tinto Brass em 1979.

— Foi muito difícil conseguir apoio, (os patrocinadores) achavam que seria uma pornografia só. Mas o espetáculo não é obsceno. A volúpia e o erotismo estão nas palavras de Camus — explica o diretor.

GABRIEL VILLELA: nascido na zona rural de Carmo do Rio Claro (MG), o diretor estudou na USP e passou três anos no Rio, na década de 90: “Combinei sexo, drogas e rock. Mineiro não dá conta disso, não” é, sobretudo, o poder da palavra que leva Gabriel Villela a aceitar ou não um convite (“Depois dos 40 a gente passa a ficar muito exigente”, diz), a embarcar ou não em universos tão distintos como “Ricardo III”, “Calígula” e “O soldadinho e a bailarina”, espetáculo infantil protagonizado por Luana Piovani que encerrou temporada no Rio no último fim de semana.

— Um dos maiores méritos de um projeto é o texto. E eu sigo o caminho dos clássicos. Tenho até dificuldades em lidar com adaptações literárias, mas gosto de desafios — conta o diretor, que não se furtou a mergulhar numa adaptação para 2011. — Comecei a trabalhar em “Crônica da casa assassinada”, do Lúcio Cardoso. Mas sei que para entrar num projeto desses e não deixar descarrilar preciso antes encostar em Shakespeare. É onde a palavra é o foco da experiência. É nos clássicos que o verbo tem poder.

Poder é o que Gabriel revela ter sentido em meados dos anos 90. Natural da zona rural de Carmo do Rio Claro (MG) (“Nasci no meio do mato, entre carneiros e lobos, conheci teatro no circo, bordado em casa e piano com a minha avó”, lembra), tardou 24 anos para romper o cordão umbilical e se lançar ao mundo. Após mambembar por cidades do interior com um grupo de teatro criado na sua cidade natal, Villela passou por uma revolução intelectual nos corredores da USP (“Abriu minha cabeça. Percebi que não podia fazer mais nada a não ser teatro e trabalhar para comprar livros”, recorda).

— Para vocês, litorâneos, das grandes cidades, é normal toda essa coisa cosmopolita, mas para a gente é doído. Sair de Minas foi muito difícil. A gente não nasceu no mundo... É como o Caetano diz em “No dia em que eu vim-me embora” — analisa.

E depois de circular pela capital paulista e se firmar como diretor teatral com trabalhos ao lado do Grupo Galpão, Gabriel veio parar no Rio nos anos 90, numa temporada de êxtase e horror, que, ao longo de três anos, o fez entender que o ápice e a queda, a “hóstia e a cocaína são ações equivalentes”.

— Trabalhei nos shows deBethânia, Milton... Achei que eu era bacana, me deslumbrei e enfiei o pé na jaca. Combinei sexo, drogas e rock nessa cidade em que as pessoas tiram a roupa com perfeição. Mineiro não dá conta disso, não — conta.

Se até os 23 era “carola e rezava em missas”, aos 35, “Inferno”, de Strindberg, era o livro de cabeceira.

— Foi um despertar sexual somado ao lado barra pesada. “Calígula” não deixa de ser um retorno, mas no palco. É um processo de autoconhecimento, um mergulho nesse lado B da vida — diz.

O repórter viajou a convite da produção de “Calígula”

Jornal: O GLOBO /  Segundo Caderno

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