segunda-feira, 29 de março de 2010

Festival de Curitiba / crítica.

Festival de Curitiba mostra quebra de fronteira entre teatro e artes plásticas

GUSTAVO FIORATTI
da Folha de S.Paulo, enviado especial a Curitiba

No momento em que o ator Ranieri Gonzales toma impulso para um mergulho de cabeça contra a parede cenográfica do espetáculo "Vida", fica em suspensão não só o ritmo alucinante de uma peça cheia de dilemas íntimos, com base na obra de Paulo Leminski, mas também uma espécie de simbologia metalinguística apontando o esfacelamento de fronteiras entre expressões artísticas, mais especificamente entre teatro e artes visuais.

Com essa peça sobretudo, mas também em "Cinema", de Felipe Hirsch, "Travesties", da Companhia de Ópera Seca, e "Um Navio no Espaço ou Ana Cristina César", dirigida por Paulo José, o festival representou um grupo de encenadores empenhados em reverter uma tradicional hierarquia das artes cênicas. Nestes trabalhos, cenário, luz e trilha sonora deixam de ser elementos ilustrativos.

Sinais dos tempos, estavam presentes na mostra contemporânea desta edição do festival cenografias assinadas por Daniela Thomas ("Cinema"), William Pereira ("Travesties"), Márcio Medina ("Till, a Saga de um Herói Torto") e Bia Lessa ("Formas Breves"). São nomes habituados a lidar com essa quebra; todos eles já exerceram alguma outra representação artística, ou como diretores, ou como escritores e intérpretes, ou como escultores até.

"Estive na Bienal de Veneza de 2009, e ali ficou muito evidente que as fronteiras entre expressões artísticas caducaram", diz Daniela Thomas. Sua cenografia para "Cinema" praticamente fundamenta a composição dramatúrgica da peça. É sobre o cenário, pensado também por Hirsch antes do texto, que surge o protagonista de uma história: o próprio cinema. Não é literal, mas está ali "o retrato de uma sala de rua de São Paulo, dessas que estão desaparecendo", define o diretor.

A iluminação reflete no rosto dos personagens, sentados numa plateia, a luz emitida por um projetor. Foi concebida por Beto Bruel, iluminador que já venceu três vezes o Shell.

De volta ao ator que se jogou contra o cenário de "Vida", atravessando uma de suas paredes, rasgando com o próprio corpo um ambiente onírico e claustrofóbico: quão próximo estaria ele de uma ação performática, expressão hoje mais relacionada às artes visuais?

Muito próximo, responde o diretor da peça, Márcio Abreu. "A interface com artes de outra natureza abre o campo de leitura do texto." Por trás daquela cena, existe um trabalho de materiais. O próprio cenógrafo, Fernando Marés, ganhou arranhões, testando a possibilidade de romper a parede com o corpo. Faz lembrar a dupla Marina Abramovic e Ulay em "Interruption in Space", de 1977, em que ambos se jogam contra a parede à exaustão.

O cenário de "Travesties" é outro exemplo, chegou ao teatro Guaíra em dois caminhões. Um amontoado de jornais e livros, além de mesas e cadeiras, que William Pereira usou para compor um tipo de fundo grandioso, mais comum em óperas, com estética acentuada pela iluminação do diretor Caetano Vilela. Impactante, o que era fundo veio à frente do espetáculo. Especialmente na chuva de livros do primeiro ato.

Para a curadora do festival, Tânia Brandão, a ascensão do trabalho de cenógrafos a um primeiro plano reflete o aprofundamento de pesquisas que, em parte, deriva do suporte financeiro de políticas públicas e leis de incentivo. "Se não fosse esse inchaço, acho que não teríamos conseguido fazer essa representação na Mostra Contemporânea", diz. Para o diretor do festival, o exemplo contrário é a própria edição do ano passado, que minguou por conta da crise mundial.

O repórter GUSTAVO FIORATTI viaja a convite do Festival de Teatro de Curitiba

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