Kil Abreu
Kil Abreu traça panorama teatral do país
Por Kil Abreu
Para entender a grande variedade de experiências vividas hoje na cena teatral é preciso olhar primeiro para os modos de produção e o seu entorno, especialmente no capítulo das políticas públicas para a área. Com isto não se diz, evidentemente, que a diversidade de proposições estéticas que o teatro vive se deve apenas a paulatina mudança de paradigma no modelo de incentivo, que está de fato acontecendo, ainda que de maneira muito desigual, Brasil afora. É que em nenhuma arte a relação entre investimentos e qualidade de pensamento é muito segura. Às vezes, pelo contrário, processos artísticos altamente subvencionados redundam em obras irrelevantes. Entretanto, tem sido visível que a multiplicação das oportunidades quanto às condições de criação e circulação de espetáculos gera um ambiente cultural vivo em proposições. Isto acontece sobretudo nos lugares em que o sistema de fomento à produção artística se aproxima mais da subvenção direta do Estado e menos de Leis de incentivo como a Lei Rouanet, que em regra subsidiavam, até poucos anos atrás, apenas o teatro de mercado, de pouco risco estético.
A ponta de lança no processo de redefinição dos rumos do teatro brasileiro é a retomada da cultura de grupo. Ainda que muitos grupos de teatro tenham surgido nos anos 80 convencionou-se dizer que a década fora marcada pela presença autoral do encenador e por criações que tendiam a serem reconhecidas em uma única assinatura. Não à toa naquele momento era comum se referir a um trabalho, por exemplo, como o espetáculo “do Gerald Thomas”, ou “do Ulysses Cruz”, para citar dois dos mais importantes criadores do período. Em montagens formalistas como Carmem com Filtro (Thomas, de 86), era recorrente a voz ensimesmada, o esmerado acabamento plástico e o hermetismo que de alguma forma tentavam desideologizar o palco cansado de guerra dos anos 70.
Hoje a perspectiva autoral inverteu-se novamente em direção aos coletivos. Pode-se dizer que o teatro brasileiro atual, ou boa parte do que nele interessa, é uma síntese de época que equilibra as posições do encenador como criador ilhado e o grupo como instância de deliberação coletiva. Mas, em um e outro caso o teatro já não é mais o mesmo e sofre uma dialética interessante. Por um lado encenadores da estatura de Antunes Filho e José Celso Martinez Correa continuam suas jornadas em que o brilho individual é, como sempre foi, indispensável aos projetos artísticos. Mas também o são as suas respectivas companhias. No seu Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, mantido pelo Sesc e nascedouro de uma geração inteira de grandes intérpretes, Antunes continua dirigindo os espetáculos que desdobram as características de estilo que o notabilizaram, mas manteve durante os últimos dez anos, em pararelo, o projeto Pret a Porter, para a montagem de trabalhos escritos e dirigidos pelos próprios atores. Ali ele se autodenominava apenas “coordenador” e não mais diretor. Uma mudança radical de perspectiva, se considerarmos a condição paradigmática de Antunes como encenador.
Em outra frente o grupo de teatro atual também já não obedece às mesmas dinâmicas da chamada “criação coletiva” que marcou os anos 70. Ali, por força da necessidade de agregação diante do momento politicamente adverso e de negação da incômoda figura centralizadora do diretor quando o artista se esforçava justo por protestar a autoridade, o teatro dissolvera as funções criativas e buscara horizontalizar as relações de poder. Hoje, sem a pressão que aquela conjuntura demandava ao imaginário e em época pautada pelo pragmatismo sem culpa na divisão do trabalho os princípios de criação se modificam. Nos processos cooperativados que a maioria dos grupos brasileiros empreende há um trânsito mais que razoável e estimulado entre uma e outra função (por exemplo, o ator como criador do texto dramatúrgico, ou o dramaturgo que trabalha criando cenas junto com os atores, em sala de ensaio); mas as funções aparecem preservadas, os ofícios particulares são respeitados, havendo apenas um trânsito mais fluido entre eles. De todo modo, entender esta dinâmica, batizada genericamente pelos grupos de teatro como “processos colaborativos”, é fundamental para avaliar a fatura estética que está surgindo nestas bases.
Sem demérito ao chamado “teatro de produção”, em que artistas – atores, diretor, técnicos – são contratados para montar um espetáculo em um tipo de experiência normalmente de curto prazo, é no teatro de grupo, quando colocado em perspectiva experimental, que as condições ideais para o sucesso estético têm sido plantadas. É que o grupo tem a seu favor o fato de contar com um núcleo de trabalho que tende a se afinar cada vez mais com o tempo, em projetos artísticos mais ambiciosos e pensados para um tempo de resolução mais lato, em que os propósitos formais, políticos, de linguagem e de pensamento têm espaço maior para evoluir, e em sintonia comum. Isso porque não há para o grupo muitos outros atrativos que justifiquem a agregação. Muitas vezes, ao contrário, do ponto de vista financeiro a atividade é até inviável, ainda que o rendimento artístico seja promissor.
Tomemos como exemplo um dos últimos espetáculos do Teatro da Vertigem, de São Paulo. BR-3 (2006), dramaturgia de Bernardo Carvalho com direção de Antonio Araújo, é uma tragédia épica que toma como tarefa um passeio pelas questões de identidade do Brasil. Trata-se de um projeto que consumiu dois anos de pesquisas e ensaios e mobilizou a Companhia em um percurso que começou na Vila Brasilândia, bairro da periferia de São Paulo, até Brasiléia, cidade do Acre. O espetáculo foi representado no trecho urbano do rio Tietê, na cidade de São Paulo, em barcaças que comportavam menos de 50 espectadores por sessão. Do ponto de vista mercadológico a empreitada era desde logo inviável. Mas isso era compensado com sobra pelas implicações de ordem política e estética que o projeto suscitava. A proposta de fazer o diálogo crítico e direto do acontecimento teatral com a cidade através de um dos seus símbolos mais caros, assim como os desdobramentos necessários para que isto tivesse consequência do ponto de vista da coisa cênica (por exemplo, na modulação das interpretações, no trabalho de cenografia e iluminação de um espaço amplo e inusitado como o rio) justificavam a aventura, tornada impossível se as referências de viabilidade fossem as do teatro de mercado.
São grupos como o Vertigem, praticamente anônimos se comparados aos espetáculos comerciais em geral sustentados na imagem de algum artista televisivo, que têm garantido, por um lado, as possibilidades de reinvenção da linguagem teatral. Por outro, talvez movidos pelo instinto de sobrevivência, são estes coletivos que têm forçado as saídas do círculo vicioso em que o teatro feito para a classe média brasileira se encalacrou, à base das comédias ligeiras e nos seus ambientes fechados. O caminhar em direção aos espaços abertos e o contato direto com a cidade deixou de ser tarefa para o chamado teatro de rua. Companhias como o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), Ói nós aqui traveiz (RS), Cia. São Jorge de variedades (SP), ou o mineiro Galpão, que faz seu retorno às praças depois de vários anos, talham suas dramaturgias à risca para este contato menos mediado com plateias que na maioria das vezes não os veriam senão nestas circunstâncias.
Caminhos formais
O teatro hegemônico, entretanto, continua sendo o que se sustenta nas variações da teledramaturgia levada ao palco ou, mais recentemente, na fatia dos grandes musicais. É que o público das salas de espetáculo no Brasil é a classe média, e esta majoritariamente se referencia no chamado televisivo ou no modelo dos mega espetáculos americanos. Quanto aos musicais, em que pese um ou outro com mais estofo e inquietação, em geral são espetáculos que impressionam pelo grande volume de produção e excelente aparato técnico. Infelizmente, em contraponto, perdem em originalidade. O país ainda está por ver ampliar, em anos futuros, o incremento a uma dramaturgia de fato brasileira nesta área, sem os arremedos e cacoetes da Broadway.
No caso da Televisão é curioso que o teatro tenha emprestado a ela uma de suas linhagens, o naturalismo, e agora permaneça refém de uma herança que volta na mesma chave, só que mais empobrecida. Talvez por isso a cena experimental tenha se dedicado a uma espécie de desdramatização do teatro, aproximando-o da performance e com isso enxugando o palco de um dos seus mais importantes tabus: o da representação em chave mimética. Ou seja, da representação como imitação de pessoas ou situações. Salvo engano para artistas que ainda veem na arte alguma possibilidade de contraponto à pasteurização da realidade (e vivemos sem dúvida um realismo mais que excessivo na cultura midiática), é o próprio princípio de imitação do real que está sendo posto em jogo para que possamos saber o que sobrou dele, como o fizeram os primeiros modernos.
Quando assistimos, por exemplo, aos espetáculos da Companhia dos atores (Ensaio. Hamlet), aos do Uzyna Uzona na direção de Zé Celso (Os Sertões), à Companhia do Latão (O Círculo de giz caucasiano), às montagens do Teatro Autônomo (Deve haver algum sentido em mim que basta) ou às direções de Cristiane Jatahy (A falta que nos move ou todas as histórias são ficção), é este sentido de assalto às possibilidades da representação do real que estão sendo formulados. Cada qual em sua coordenada, seja ela mais formalista ou essencialmente de proposição política, são teatros que tateiam a reinvenção do arsenal expressivo que constitui as próprias linguagens do teatro, muitas delas já assimiladas e neutralizadas na cultura de massa.
O momento, que comporta esta dialética complexa entre tradição e invenção, entre o herdado e o novo, por sua vez não está longe de algo parecido que ocorre no processo social. Assim como se vive, ilusoriamente ou não, certa euforia com a promessa de um país prestes a se alinhar aos grandes no painel internacional, e portanto com alguma perspectiva de autonomia, sem ter superado no entanto seus vícios históricos mais elementares, assim também uma parte do teatro brasileiro está deixando de lado as chamadas formas modelares para correr atrás do próprio destino, mesmo que não tenha solidificado uma tradição teatral como é característica de culturas mais antigas. Por vezes os resultados são estranhos como estranha é nossa própria sociabilidade no que ela tem então de parcial, provisória e incompleta. Mas, de qualquer maneira, temos mais chances de nos reconhecermos como sujeitos nestas experiências “erradas”, que parecem ser francamente mais honestas.
Isto pode ser visto, por exemplo, em uma montagem ímpar neste sentido da estranheza, Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer, da Cia. São Jorge de variedades, premiado espetáculo baseado em textos de Heiner Muller e amparado no sentimento de uma militância juvenil à procura de uma causa. É um trabalho que diz mais sobre o sentimento de uma parcela da juventude brasileira diante da época que muitos tratados sociológicos. Coisa igual se pode ver também nas dramaturgias de uma geração excelente de autores nordestinos, como Newton Moreno (Agreste, Assombrações do Recife Velho), Emanuel Nogueira (De braços cruzados) e Gero Camilo (Aldeotas). São dramaturgos que colocam os elementos formais de certas convenções das culturas regionais, como a contação de caso e o relato oral popular, em perspectiva inusual, que visita a um só tempo o lugar de origem como tema e o futuro do teatro como linguagem possível. A tarefa, tomada deliberadamente ou não, parece ser buscar caminhos próprios e para isso será necessário desvencilhar-se ou reinventar segundo as necessidades presentes as formas consagradas da expressão teatral.
Neste teatro diverso, criado em circunstâncias não favoráveis à mercantilização, mas que representa o capital simbólico indispensável à cultura e que, portanto, necessita de um modelo específico de fomento; nesta cena impura e, pode-se dizer, praticamente anônima, paralela aos contextos midiáticos, é lá que a arte do teatro está sobrevivendo e onde o Brasil está sendo pensado. A expectativa e a esperança é que esta parte da produção encontre naquelas condições hoje mais favoráveis citadas no início os meios para a sua circulação e inserção mais decisiva no ambiente cultural, sobretudo quanto ao encontro com as plateias. Sem isso talvez prevaleça a dicotomia perversa que precisa ser desafiada: a de uma arte inofensiva feita para as camadas médias da população e uma arte inquieta, que no entanto permanece oculta para a maioria.
*Texto originalmente publicado na Revista Cult de outubro de 2010.
Adorei ler o texto do Kil, mas devemos contextualizar seu ponto de vista "paulistanocentrico", ou seja, o título não deveria ser este!
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