quinta-feira, 19 de maio de 2011
Espectros, de Henryk Ibsen, no SESC Consolação (São Paulo, SP)
O inverno das desesperanças
Jefferson del Rios - O Estado de S.Paulo
Ao fim de Espectros, de Henrik Ibsen, há referência ao sol como conforto físico e libertação. É compreensível. Embora seja um recanto belíssimo da Europa, com belos verões, o inverno pode ser cruel na Escandinávia e Finlândia. Além das páginas de Ibsen, as chuvas e ventos aparecem na literatura daquela região. Surgem no sofrido enredo do romance Fome, do seu conterrâneo Knut Hansun, nas sagas islandesas de Halldor Laxness, como O Sino da Islândia e Gente Independente, e em Santa Miséria, do finlandês Frans Eemil Sollanpaa. Todos ganhadores do Nobel. Dessas brumas surgem os espectros ibsesianos, do sueco August Strindberg e de filmes de Ingmar Bergman. O nome original da peça é Gengangere, que em tradução livre seria "Aqueles que voltam". Não como os fantasmas das lendas, mas como remorsos, queixas e contas afetivas não acertadas. Os sustos da vida não são apenas causados por fatores externos ou a abstração denominada destino. Não. Os personagens respondem pelas próprias falhas, escolhas e omissões.
Ibsen (1828-1906) foi reformista moral, o pregador contra as indignidades da burguesia do século 19. Previa convulsões sociais, embora o assustassem (o povo nas ruas durante a Comuna de Paris, em 1870). Sua ideologia mais avançada seria o socialismo mitigado e pré-marxista. Como força verbal, elevou o teatro do Ocidente a um nível superior de indagações existenciais. Sua divisa era "A vida significa lutar com os fantasmas no próprio cérebro e coração. Poesia significa julgar-se a si próprio".
Em estudo a ele dedicado, o brilhante ensaísta e crítico literário Otto Maria Carpeaux fez a análise detalhada desse teatro que desafia o tempo. Após classificar de magistral a técnica dramatúrgica do escritor para montar a ação, Carpeaux observou: "Seus problemas hoje são obsoletos (ninguém mais se interessa pela sífilis hereditária) ou foram resolvidos, como a emancipação legal da mulher (tema da sua Casa de Bonecas que causou polêmica). Podemos discutir as virtudes e defeitos do norueguês e, meia hora depois de levantado o pano, tudo está esquecido, ficamos presos, impressionados, convencidos". É o que acontece no belo espetáculo de Francisco Medeiros com elenco em que Clara Carvalho é o sol em luminosa interpretação.
Em Espectros, o pesadelo da sífilis (condenação terrível) ronda a casa burguesa como doença e metáfora de um universo corroído por casamentos falsos, incesto, cristianismo hipócrita e servilismo transmudado em chantagem. Só a morte e o fogo purificarão tantas falsidades. O original é longo, pesado em algumas partes. O espetáculo baseia-se na adaptação de Bergman, que soube captar os gritos e sussurros de famílias atormentadas. O texto a que se assiste contorna parcialmente a caudalosa introdução de Espectros, quando os conflitos são esboçados: viúva senhorial às voltas com o filho doente e a secreta história do marido, os agregados com atitudes dúbias e um pastor conservador e interesseiro. No segundo movimento da história, quando as responsabilidades e mentiras afloram, a obra atinge a trágica dimensão que levou Ibsen a ser definido como o Shakespeare burguês.
Com essa trama, Medeiros levantou com maestria artística um espetáculo de impactos contínuos impostos por um elenco crispado nos mínimos detalhes, a começar pela admirável Clara Carvalho. Ela cresce para além do seu físico delicado em composição de impressionante força dramática. Suas expressões, falas, andar e gestos firmes traduzem com pleno domínio cênico a angústia e revolta de uma mulher em meio a um desastre. A cena com o filho é para se guardar na memória. Por ela e por Flavio Barollo, ator jovem que sabe dosar intensidade e desalento. A galeria humana desse inverno de desesperanças é reforçada pela máscara expressiva de Plínio Soares, o homem pobre que faz da fraqueza uma arma; é visível na sutil mudança de atitudes da criada representada por Patrícia Castilho; e na veemência duvidosa do pastor que Nelson Baskerville assume, embora às vezes no olhar ausente e expressão distraída aparente ver o personagem de fora. Esse quarteto circula em uma ambientação de fim de mundo ou época reforçada pela cenografia de arcos pesados (Márcio Medina), luz ora cortante, ora difusa (Wagner Freire) e música que sugere mistério (Eduardo Agni).
Medeiros e companheiros conseguiram, assim, reproduzir no palco a perplexidade assustada que o também dinamarquês Munch expressou em conhecida pintura. A vida pode ser um grito mudo.
ESPECTROS
Sesc Consolação. Teatro. Rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-3000. 6ª e sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 32. Até 19/6.
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