UM CERTO ARRABAL ATERRISA NO TEATRO AUGUSTA
Ruy Jobim Neto
O Teatro paulistano tem a sorte e o privilégio da diversidade, onde clássicos modernos e clássicos eternos dividem a cena e traçam suas estratégias múltiplas para acordar um público não menos do que avisado. Em inglês, a palavra moviegoer se aplica muito bem ao cinéfilo que prefere ver seus filmes prediletos na telona. O theatergoer (e essa palavra existe mesmo, não é um neologismo) daqui, de São Paulo, tem, como opções, desde Nelson a Plínio (Marcos), de Neil LaBute a Shakespeare, de Luis Alberto de Abreu a Sade. Mas é um certo Arrabal que dá o cutucão feroz em todo o restante, mexendo com as ideias (agora, sem o acento) e com as plateias (também sem o acento). Arrabal tira o acento.
O (já clássico) Fernando Arrabal (nascido em 1932, no Marrocos espanhol) é o mais recente dramaturgo montado pelo Teatro Kaus Cia. Experimental, grupo que foi trazido de São José dos Campos para a capital pelo diretor Reginaldo Nascimento e pela atriz/jornalista Amália Pereira e que já montou muita coisa boa por essas bandas de cá. Agora eles trazem “O GRANDE CERIMONIAL” para completar o rol e ficar em cartaz na Sala Experimental do Teatro Augusta.
Arrabal não poupa nada, nem ninguém, e o mesmo faz essa montagem do Kaus. Concessão zero. O personagem central de “O GRANDE CERIMONIAL”, o (quase coitado) Cavanosa, um Casanova totalmente às avessas, é o embate em pessoa. Sua alma atormentada luta contra seus fantasmas, suas ilusões e suas sombras. Nascimento aproveita as vertentes do autor de clássicos modernos, como “O Cemitério de Automóveis” e “O Arquiteto e o Imperador da Assíria”, para tecer sua encenação em direção ao bizarro da vida humana. O Teatro Pânico de Arrabal tem, no sangue, a tradição do que há de mais bizarro, por exemplo, em autores como o espanhol Valle-Inclán. Mas segue além.
O diretor extrai de seu elenco a força física e emocional para travar o embate entre as luzes e as trevas da natureza humana e do universo claustrofóbico de Arrabal. Daí, o trabalho monumental dos atores, em corpo e voz, no anti-jogo de não-olhares e não-toques, no texto que desmonta e remonta instantaneamente angústias e desejos, tudo ao mesmo tempo. Haja vulcão na Islândia! A preparação corporal intensa contracena com um texto intenso. É o trunfo dessa montagem.
A música da peça embala insânias, nada de condescendências. As bonecas dispostas em cena, tristes e dóceis títeres caídos, foram criadas pela imaginação da artista plástica Suzy Gheler, e dão ao cenário um pingo de desespero, o que faz imaginar uma coleção de vítimas submissas de um Norman Bates de Hitchcock, que busca a poesia no horror. Não, Cavanosa pode não ser um louco, mas ele certamente está em processo e parece se divertir com isso. Daí, o visceral formalismo com que trabalha o encenador, embora alguns momentos do espetáculo, ainda que por um átimo, pareçam sufocantes, instantes quase arrastados. Mas pode ter sido uma apresentação em si, ou é parte da angústia declarada em cena.
Amália Pereira faz duas personagens antípodas, Sil e Lis (antípodas na mente do protagonista Cavanosa, diga-se de passagem). A candura de uma contrasta com a tensão sexual da outra, ou vice-versa. A atriz elabora corpo e voz com maestria, criando um ar pungente para ambas as personagens. Da mesma forma, o eficiente Alessandro Hernandez nos providencia em cena um Cavanosa atordoado pela mãe (Deborah Scavone, muito bem no papel), pelas bonecas que ele usa como objetos de um não-sexo e, finalmente, pelo conjunto das mulheres de verdade, no caso, vividas por Sil e Lis.
Não, Cavanosa não é um fóbico, não teme as mulheres. É apenas um atormentado, um enjeitado que se delicia com xingamentos e afasta veementemente um elogio, qualquer que seja, venha de onde vier. É dureza, esse personagem. Arrabal não mede nada, ele despeja torrentes, o tempo todo, infatigavelmente. Como um vulcão na Islândia.
Assim, a montagem de Reginaldo Nascimento faz jus a essa vertente do Teatro Pânico criado por Arrabal, por Alejandro Jodorowsky e por Roland Topor, os três papas do lúdico, do gozoso e da mais absoluta modernidade. O Kaus despeja esse universo atormentado para plateias reduzidas, na pequenina Sala Experimental do Teatro Augusta (alguns já a batizaram de “Augustinha”), exatamente para fornecer o desespero sem concessão, em pura claustrofobia. Boa escolha.
A criteriosa iluminação (de Vanderlei Conte) é precisamente parca, com poucos focos gerando sombras distorcidas e gigantes, expressionistas mesmo, e alguns contra-luzes que provocam nossos olhos, para enredar os personagens e os espectadores num mundo distorcido, opaco e sem saída, como prega cada linha de diálogo de “O GRANDE CERIMONIAL”. Mas, afinal, o que é este “grande cerimonial” do título? Melhor a plateia descobrir por si própria, pois cada um vai tecer sua impressão sobre o que não se deve decifrar muito, o que também poderia incorrer num belo desacerto. Melhor assistir à peça.
Depois de trabalhar autores como Plínio, Jorge Andrade, Millôr, Aimar Labaki, Luis Alberto de Abreu e de trazer e traduzir em workshops, montagens e livros dramaturgos como Santiago Serrano, Marco Antonio de La Parra e Edílio Peña (entre outros, no vitorioso projeto “Fronteiras”, fomentado pela Prefeitura), o Kaus atinge novo patamar. Eles trouxeram também o próprio Arrabal ao Instituto Cervantes, para palestras, e agora submetem São Paulo a um texto inédito do espanhol, cutucando onças com varas curtas, trazendo novidades e não parando um instante sequer. Que venham as novidades, que certamente virão. Por enquanto, o theatergoer paulistano vai decifrando o cerimonial, no Augustinha. Talvez esse cerimonial seja mesmo o próprio teatro, em si, na sua brutalidade de luz, de texto, de atores e uma plateia (agora sem acento).
SERVIÇO
“O GRANDE CERIMONIAL”
Texto: Fernando Arrabal
Direção: Reginaldo Nascimento. Com o Teatro Kaus Cia. Experimental
Sala Experimental do Teatro Augusta - Quartas e Quintas, 21h (100 min.)
Recomendado para: 14 anos
Ingressos a R$ 30 (estudantes, maiores de 60 anos e classe teatral: 50% desconto) – estreou em 12 de maio. Até 1 de julho.
Telefone: (11) 3151-4141
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