segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Luigi Pirandello desmontado em livro

A paixão que mudou os rumos do teatro




Sem a atriz Marta Abba não existiriam peças como Os Gigantes da Montanha

Antonio Gonçalves Filho (Estadão)

AUTÓGRAFO - Foto oferecida por Pirandello ao Estado em 1927, quando renegou o fascismo de MussoliniCom o livro sobre Marta Abba, da atriz e professora Martha Ribeiro, que traduziu e dirigiu Quando se É Alguém, texto de Pirandello encenado pela primeira vez no Brasil no ano passado, o catálogo de obras lançadas sobre o dramaturgo nos últimos dois anos cresce não só em tamanho. Ele ganha um ensaio que trata com profundidade da relação entre o autor e sua musa inspiradora, a atriz Marta Abba (1900-1988).

Ela provocou uma revolução não só na vida pessoal como na dramaturgia de Pirandello. Foi depois que se conheceram, em 1925, que ele escreveu a peça Diana e Tuda (Diana e la Tuda) - coincidentemente, o mesmo ano em que teve sua primeira encenação no Brasil com a montagem de Assim É se lhe Parece por Jayme Costa (1897-1967).Foi também por essa época que o teatro de Pirandello mudou radicalmente, ele que já havia provocado escândalos memoráveis - como o da estreia de Seis Personagens à Procura de Um Autor, em 1921, quando o público pediu que internassem o autor num manicômio.

Apaixonado por Marta Abba, ele escreveu para a atriz - transferindo características suas para os personagens - peças que os críticos resolveram esnobar como "decadentes". Elas só foram recuperadas nos anos 1960, segundo a autora do livro, mas algumas tiveram de esperar até os anos 1980 para serem reavaliadas, entre elas a citada Diana e Tuda, A Amiga das Mulheres, Encontrar-se, Quando se É Alguém e Como me Quiseres.

A explicação que a professora Martha Ribeiro dá para esse quase desprezo crítico está relacionada a uma mudança de foco: Pirandello teria se afastado da "primitiva inspiração, a de poeta da condição trágica da sociedade burguesa", para experimentar "evasões surrealistas, fugas ao irracional, na crença de uma existência superior". Os críticos desaprovaram.

Preferiam as peças da segunda fase de sua dramaturgia, que começa em 1917 com Assim É se lhe Parece, e vai até 1924, antes de Marta Abba. A autora do livro, por sua vez, resiste em dividir o autor por fases, mas concede especial importância às metáforas e aos arquétipos pessoais do último período de vida de Pirandello, o da paixão de Marta Abba, sem a qual esse teatro não existiria.

Ruiva, jovem, sensual, Marta Abba entrou no mundo de Pirandello na primavera de 1925, interpretando o papel da Enteada em Seis Personagens à Procura de Um Autor. Um ano depois, já era a diva, a santa, a heroína absoluta do dramaturgo.

Em 1926, ele concebeu sua primeira peça pensada exclusivamente para o estilo de interpretação da atriz, descrito por críticos como o de uma fera enjaulada que, acossada, pulava em frente ao antagonista e, passando a mão na longa cabeleira ruiva, deixava os espectadores sobressaltados. Esses mesmos críticos observam que hoje, depois dos cabelos cuidadosamente despenteados de Marilyn Monroe, qualquer atriz faz isso, mas, na época de Marta Abba, era absolutamente impensável.

Marta Abba não dava importância para academias de arte dramática, conta a autora no livro. Achava que ator já nasce ator, não se torna ator. E Marta, ainda por cima, era do tipo que pensava. Não ia atrás da memória emocional, ou seja, não teria jamais seguido o método de interpretação sistematizado pelo russo Stanislavski.

De personalidade forte, adaptou o teatro pirandelliano ao seu temperamento. Pirandello se derretia, mas, entre a santa e a prostituta, preferiu endeusá-la, colocando Marta num pedestal inalcançável - principalmente por se considerar velho demais para ela, sublimando, portanto, sua pulsão sexual.

Consolou-se com o papel de pai espiritual, embora com vocação incestuosa.De Diana e Tuda a Os Gigantes da Montanha, garante a autora do livro, toda a dramaturgia de Pirandello é "construída sob o signo da atriz". Essas personagens ruivas e contraditórias, segundo Martha Ribeiro, "filtram a parte proibida e inconfessável das pulsões de Pirandello sobre Abba".

Esta seria bastante reservada em relação aos desejos do dramaturgo, conclui, comparando a passagem suprimida de uma carta de Pirandello, enviada de Berlim, em 1929, com a citação distorcida da correspondência numa entrevista concedida pela atriz em 1966. Em síntese, o que Pirandello diz na carta é que gostaria de se vingar de toda a castidade que o afastara de Marta Abba. Pirandello queria que ela renunciasse à sexualidade, entregando-se de corpo e alma ao teatro. "

A única saída para viver esse amor seria transformar a própria Marta em imagem", conclui a autora. Ou em personagem, considerando que o Nobel foi o arauto de uma revolução cultural que pretendia subverter todas as teorias sobre a arte de atuar. Para Pirandello, o ator deveria se livrar da bagagem pessoal, ser possuído pelo personagem, conhecê-lo numa visão epifânica. Daí que o naturalismo não tinha a mínima chance em seu teatro.

Seus personagens são seres sujeitos a forças sobrenaturais dentro de uma narrativa propositalmente assimétrica, em que a pessoa real perde para a inventada. "O personagem pirandelliano só aparece quando se abre uma fratura entre a vida íntima e um código social", observa Mario Baratto, estudioso de sua obra.

E ela aparece logo na primeira peça que Pirandello escreveu para Marta. Em Diana e Tuda, ela fez a última, uma jovem que se oferece a um velho escultor sem saber se é por piedade ou masoquismo. Marta nem chegou a enfrentar o dilema. Manteve Pirandello distante. Trecho"Os papéis femininos do último teatro de Pirandello, concebidos sob a constelação de Marta, submetem-se, de fato, à "fascinação paterna"", dirá Ivan Pupo.

A impossibilidade de se libertar deste sentimento paterno impede que os personagens pirandellianos, dominados pelo fantasma do incesto, desenvolvam uma sexualidade satisfatória.

Ainda segundo Pupo, o escritor impõe aos personagens idealizados para a atriz uma única e terrível escolha: ou do "pai" ou de mais ninguém; mas como o amor incestuoso é condenado pelo autor, aos personagens femininos só resta a solidão ou a apatia sexual. Este é o preço a se pagar pela impossibilidade da libertação do Eros.

A vamp-virtuosa no corpo de Marta Abba, esta mulher que não se pode ter, nunca terá uma sexualidade satisfatória ou plenamente desenvolvida, ela será distante e fria, ou mesmo frígida, como foi Donata em Trovarsi; ou casta e virgem, como foi Marta de L"amica degli Mogli, ou submissa a um senhor de idade avançada que a rejeita, como Tuda ou Veroccia. E Marta Abba?

Estante

Entre os livros lançados nos últimos dois anos sobre o dramaturgo destaca-se 40 Novelas de Luigi Pirandello (Companhia das Letras). Ainda estão em catálogo: Uma Jornada (Berlendis & Vertecchia), Vestir Os Nus (Civilização Brasileira), O Marido de Minha Mulher (Odisseia), O Falecido Mattia Pascal (Nova Alexandria) e O Enxerto, O Homem, a Besta e a Virtude (Edusp).

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