segunda-feira, 6 de setembro de 2010

LABIRINTO KAFKA, última semana no João Caetano (São Paulo, SP)

O LABIRINTO QUE VEIO PARA FICAR


Uma invasão bárbara está acontecendo em São Paulo, mas é daquelas invasões que são bem-vindas. E acrescentam. Os atores e o diretor da Confraria dos Ritos aportaram na capital paulista, em fevereiro de 2010, para estrear em agosto o seu “Labirinto Kafka”, no Teatro João Caetano (Zona Sul de São Paulo).


Com exceção feita a duas atrizes paulistas e uma catarinense, todos os demais componentes do elenco vieram do Rio Grande do Sul, onde já haviam apresentado o espetáculo em diversas cidades do interior gaúcho, além das sessões que fizeram em Porto Alegre. “Labirinto Kafka” estreou na capital gaúcha em janeiro de 2009 e foi premiada no festival de teatro de Rosário do Sul como melhor conjunto de elenco. Nesse quesito, em especial, a peça carrega seu grande mérito.

O trabalho empreendido pelo elenco, aberto ao método do diretor Janssen Hugo Lage, gerou uma encenação possante, que vibra, salta aos olhos e nos remete àquela sensação ínfima de que somos parte de um sistema obtuso e caótico, tão demasiadamente humano. Kafka, um dos maiores escritores da Literatura moderna, incide em nós este questionamento e a Confraria dos Ritos corresponde, exaltando em luz, texto e em mise-en-scene essa tortuosa trilha.

Hugo Lage é o criador do Teatro Fractal e do método de ator que batizou de Ritos. Observe o que ele imprime em seus atores, dentro dessa jornada kafkiana, quando a repetição de falas e cenas, propositalmente, contorna um círculo onde o que parece se encerrar, na realidade começa outra vez, e por aí vai. Mas é muito mais do que isso. É trabalho intenso de corpo e voz, de preparação e muita energia. Entre os espetáculos que Hugo Lage dirigiu estão “Cemitério de Elefantes”, “Calígula”, “Sonhos”, “Otelo”, “Mulheres de Sangue”, “Rei Lear’ e “Hamlet”.

Por sinal, o título “Labirinto Kafka” cai muito bem ao que vem dizer o espetáculo. São dois textos clássicos do escritor tcheco – o primeiro, “O Processo” e, depois, “A Metamorfose” – que na encenação fazem parte dos delírios do escritor. Os personagens despejados no palco transformam o absurdo das situações em tamanha beleza plástica que faz de “Labirinto Kafka”, sem dúvida, um dos melhores espetáculos em cartaz na cidade, atualmente.

Há, no elenco, um ou outro problema de colocação vocal e perfeita compreensão do que é dito, mas no conjunto acaba por não ser um demérito. O conjunto desenvolve um primoroso trabalho de corpo, voz e energia. A iluminação é primorosa, e sua operação requer atenção redobrada, concentração absoluta. Ela é brilhantemente criada e no conjunto, ela encanta com seus triângulos, os focos de elipsoidais, os jogos de cores e contraluzes. O que a plateia ganha em luz e som se reflete no que é dito pelos atores nas duas partes em que o espetáculo se divide.

Anderson Ciccone, que interpreta os protagonistas Joseph K. (nas cenas de “O Processo”) e Gregor Samsa (em “A Metamorfose”), extravasa a sua técnica e força cênica, para dar vida a essas duas criaturas desesperadas num mundo que lhes é hostil e que não lhe explica a que vem. Junto dele, um elenco de primeira, e todos tecem uma teia de personagens que respiram, bufam, são tortuosos, doloridos e encarniçados. Mariana Brum impõe uma voz suave e precisa aos dois personagens aos quais dá vida, nas duas tramas, e ela fica irreconhecível na maquiagem pesada que utiliza.


A presença de John Robert no palco é posante e ao mesmo tempo delicada, enquanto Leandro Borges despeja voz e corpo nos tormentos do pai de Gregor Samsa e Thatiana Moraes expele o nojo que Enya, irmã do homem que se transforma em inseto, sente do fedor e da situação bizarra que a ela é apresentada. As situações insólitas em que são despejados os personagens provocam comentários, risadas nervosas, e a plateia se cala com o espelho de nossa sociedade obtusa. O espelho nos embevece com a plasticidade das cenas e do movimento que Hugo Lage provocou e também atordoa. Só depois da peça é que se vai pensar mesmo nisso.

Desde o início, quando a plateia é recebida por uma cena não menos insólita, repetitiva necessariamente, envolta em fumaça, até explodir a encenação, o poderoso labirinto kafkiano se impõe, instala-se diante do espectador. E o próprio Kafka é confrontado em cena, expondo seus delírios, donde resultam as duas tramas famosas.

Em “O Processo”, um funcionário público tem seu dia devastado pela suspeita de um assassinato. Ele se diz inocente, é preso de forma sumária e seu julgamento está a caminho. A situação absurda do protagonista, Joseph K., nos dá a medida da burocracia e da violência dos governos que já recrudesciam em sua estupidez no alvorecer do século XX, detonando, em conseqüência, na Primeira Guerra Mundial. É espantosa a atualidade da trama.

Na segunda parte, “A Metamorfose”, Gregor Samsa é um caixeiro viajante arrimo de sua família pequeno-burguesa e que, num dia não menos medonho, acorda sob a horripilante, fedorenta e dolorosa forma de um inseto de grandes proporções. O insólito interessa ao mesmo tempo ao escritor tcheco como à Confraria dos Ritos, e cenicamente funciona muito bem, mostrando cruamente como a mentalidade das pessoas, no que há de mais cruel, reage àqueles que saem da órbita normal das coisas.

O espetáculo é assim dividido: há uma proposição, acontecem as duas histórias e finalmente uma conclusão que não parece se encerrar. Fica para o espectador completar, e aí recai no que se propõe a encenação de Hugo Lage e seus atores. Este grupo, aliás, detém uma história interessante: boa parte deles veio de Porto Alegre, onde já levaram aos palcos a segunda temporada de “Labirinto Kafka”, foram morar numa casa na Zona Leste paulistana. A vinda desses atores proporcionou um workshop que não somente trouxe novos artistas para a nova temporada da peça, como também os novos trabalhos que virão. E os projetos deles estão só começando.

Com iluminação de grande brilho e muito apuro, uma trilha sonora que se repete, como as falas de muitos personagens – e até cenas inteiras são repetidas de forma proposital -, “Labirinto Kafka” amplia a insânia das duas tramas levadas ao palco. Os figurinos fazem alusão não só a pierrôs como, em outros casos, lembram o clima de um “1984” de George Orwell, com suas sociedades despersonalizadas. Ou seja, eles instalam em cena o massacrante, com extremo bom gosto visual e sonoro. Imperdível trabalho desses guris e gurias em sua última semana no belo palco reformado do Teatro João Caetano.

SERVIÇO

“LABIRINTO KAFKA”

Dramaturgia e direção: Janssen Hugo Lage

Elenco: Anderson Ciccone, Mariana Brum, Leandro Borges, John Robert, Thatiana Moraes, Raisa Rocha e outros.

Teatro João Caetano

R. Borges Lagoa, 675 – Vila Clementina (Metrô Santa Cruz)- tel. (11) 5573-3774

Sextas e sábados, 21h

Domingos, 19h

R$ 10
 
até 12 de setembro

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