Teatro/CRÍTICA
"Colapso"
http://lionel-fischer.blogspot.com/2010/04/teatrocritica-colapso.html
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A lama que emerge
Lionel Fischer
Presidente da Morvhan & Calidh, Bonaldo Calidh (Osmar Prado) é um dos homens mais poderosos do país, pretende negociar armas com os iraquianos e cultiva o hábito de matar baleias azuis. Tuta Morvahn (Lena Brito), senhora da alta sociedade, é casada com o embaixador Wallace Morvhan (André Mattos), sócio da Morvhan & Calidh. Atriz, modelo e manequim, Cizâniaa (Emanuelle Araújo) namora Tim Alessandra (Ricardo Tozzi), autor de duas peças jamais encenadas e que, por intermédio de Cizâniia, torna-se biógrafo de Bonaldo Calidh. Cumpre ainda registrar que Bonaldo é amante de Tuta, que por sua vez torna-se amante de Cizâniaa, enquanto Wallace tenta seduzir o jovem Tim, sendo tais "deslizes" do conhecimento geral.
Embora promíscuo, tal contexto nada teria de muito especial, posto que os ricos e poderosos, de uma maneira geral, seguem códigos de conduta muito mais em consonância com seus impulsos do que com os valores éticos e morais supostamente imprescindíveis a qualquer sociedade. No entanto, assim como a superfície de um lago de cristalinas águas não exclui a possibilidade de ocultar, em suas profundezas, densas camadas de lodo, aqui ocorre exatamente um progressivo mergulho em algumas das áreas mais pútridas da natureza humana, tais como a hipocrisia, a desmedida ambição e uma completa indiferença no tocante ao outro, pouco importando os meios desde que o objetivo pretendido seja consumado.
Eis o que me parece essencial destacar em "Colapso", pois ir além privaria o espectador de muitas surpresas contidas na peça de Hamilton Vaz Pereira, que acaba de estrear no Teatro Poeira. Dividido em nove cenas - "R.S.V.P", "Jacinto De Thormes", "Manhã seguinte", "Aula de dança", "Na cama de Cizâniaa", "Locomotivas", "Pink, xadrez e shamú", "O velório de W. Morvhan" e "A nave de Caronte", o texto chega ao palco com direção de Hamilton, também responsável pela música.
Tendo assistido a 99% dos textos de Hamilton por ele encenados, este me parece ser o mais surpreendente, já que empreende uma espécie de radiografia de nossa sociedade ao longo do século XX, ao invés de investir "apenas" em temas intrinsicamente ligados às suas questões pessoais. Isto não significa, em absoluto, que até agora Hamilton tenha tido uma relação alienada com o mundo, priorizando somente suas aspirações, inquietações e perplexidades, ainda que as mesmas tenham sido compartilhadas por milhares de espectadores ao londo de quase quatro décadas de trabalho. Mas aqui torna-se evidente que o autor alargou seu universo temático, ao enveredar por um caminho mais politizado, mas sem renunciar ao humor crítico sempre presente em seus textos.
Contendo ótimos personagens, diálogos ferinos e uma trama repleta de surpresas, não raro desconcertantes, "Colapso" recebeu ótima versão cênica de Hamilton Vaz Pereira, o que não chega a causar nenhuma surpresa, pois estamos diante de um dos mais brilhantes encenadores nacionais. Valendo-se de marcas tão criativas quanto imprevistas, Hamilton exibe ainda o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações de todo o elenco.
Na pele de Bonaldo, Osmar Prado consegue materializar, de forma irrepreensível, o que de mais abjeto pode haver em alguém que se julga superior a tudo que o cerca e, portanto, considera-se imune a qualquer tipo de punição por seus delitos. Possuidor de uma retórica falaciosa e de uma simpatia contagiante, trata-se de um tipo realmente muito perigoso. André Mattos exibe a mesma eficiência vivendo Wallace, outro ser abjeto, tão corrupto quanto seu sócio, e cujo cinismo e lubricidade só não nos provocam total repulsa graças à habilidade do ator em manipular tais predicados valendo-se de divertido cinismo.
Eis outro tipo igualmente perigoso. Lena Brito constrói uma Tuta hilariante, aparentemente parva e subjugada pelos acontecimentos, quando no fundo tem uma visão bastante precisa da lama que a certa. De novo, um tipo muito perigoso. E a mesma periculosidade está presente nas personalidades de Cizâniaa e Tim, interpretados com vigor e sensibilidade por Emanuelle Araújo e Ricardo Tozzi.
Com relação à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a música de Hamilton, a iluminação de Jorginho de Carvalho, a cenografia de Fernando Mello da Costa, os figurinos de Inês Salgado e a trilha sonora criada por Mário Manga em parceria com o encenador, certamente determinantes para o êxito do presente espetáculo.
COLAPSO - Texto e direção de Hamilton Vaz Pereira. Com Osmar Prado, André Mattos, Emanuelle Araújo e Ricardo Tozzi. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
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