Luanda, Angola
O teatro não vivido
Crônica
Acompanhe o relato do diretor e dramaturgo brasileiro Luiz Valcazaras sobre sua convivência, em 2008, com o povo e a cultura do país africano representado na Mostra
Fui para a África.
Destino: Luanda, Angola.
Uma produtora convidou-me a dirigir um filme institucional para o governo. O que seriam 20 dias acabou se transformando em dois meses, contando com minhas fugas - pois até aquele momento ninguém sabia onde eu me escondia.
Como encenador, e estando em visita a uma terra rica na tradição oral, criei expectativas para delinear a investigação do N.I.Te. (Núcleo de Investigação Teatral), o meu grupo, no que se refere à Narrativa como Instrumentalização do Ator.
Mas pisar a nossa romantizada “Mama África” não foi o que esperava minha vã filosofia.
O choque de cultura me abriu rachaduras, deixando escoar meu objetivo lúdico e encarar uma realidade dura. Quem sabe tenha sido essa a maior experiência para uma reflexão estética sobre o meu trabalho.
Sei da insatisfação de alguns angolanos quanto à visão estrangeira dos visitantes que tentam exportar só a imagem do sofrimento e da miséria. Mas, diante de uma “máscara pós-guerra”, rústica e assustadora que nos é apresentada no cotidiano, fica difícil perfurar essa grossa casca para sorver uma seiva fina.
O “ir” e “vir” não me era convencionalmente livre, dependia de motorista ou de colegas cansados pelo trabalho exaustivo. Achei que poderia descer na avenida, levantar a mão e pegar um táxi para ir ao centro da cidade em busca de contato com algum grupo de teatro, mas a rústica máscara se levantava com um sorriso de escárnio.
O lindo céu de Luanda derretia-se em dourado no final de tarde. Estava eu em frente da casa onde fiquei, um terreno de terra batida e um enorme barracão, apenas com a cobertura de zinco. Observei uma movimentação de adolescentes com ações familiares a um ensaio. Era teatro.
Lentamente, aproximei-me e, sentando na terra ao lado de um pilar, fiquei por um longo tempo ali, submetido a olhares desconfiados.
Depois de horas um garotinho indagou: “Gosta de teatro?”. É a minha profissão, respondi. Com expressão de surpresa ele correu para o jovem diretor. Ao passar a informação, todos, cautelosos, foram se aproximando e sentando para formar um grande círculo.
Conversamos, trocamos e rimos muito, até o hálito quente da noite nos envolver por completo.
Nos dias que se seguiram eu fugia da produtora na hora da edição e ninguém me encontrava.
Estava escondido no outro quarteirão, orientando o grupo sob o quente barracão de zinco.
Não vivi um encontro com um possível movimento do teatro angolano, mas dessa simples convivência ficou-me uma certeza: se em Luanda existe um raio tão forte, que pode rachar uma máscara rústica, esse raio só pode se chamar: “alegria”.
Luiz Valcazaras é diretor e dramaturgo em São Paulo, fundador do N.I.Te. (Núcleo de investigação Teatral). Entre os seus trabalhos, destacam-se Abre as asas sobre nós, Dança lenta no local do crime e Anjo duro.
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