sexta-feira, 16 de abril de 2010

'Um Dia Ouvi a Lua', peça de Luís Alberto de Abreu (SP)


BETH NÉSPOLI - O Estado de S. Paulo

À primeira vista parece imensa a ambição de Luís Alberto de Abreu. Poeta dos palcos, ele atingiu aquele ponto da carreira em que poderia tranquilamente usufruir as conquistas adquiridas e serenamente tirar proveito de sua maestria no manejo das palavras criando peças no conforto do já sabido. Porém, esse autor de dezenas de textos, entre eles O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem, e o roteiro adaptado da minissérie Hoje É Dia de Maria, quer mais. Sua inquietação o leva a arriscar-se na experimentação de novos rumos para sua arte.

Abreu persegue uma mitologia capaz de renovar estruturalmente sua dramaturgia, quiçá além dela. Busca tomar como base outros arquétipos em substituição ao herói guerreiro, competitivo e individualista, "figura central e organizadora da Cultura", como ele define (leia ao lado). Gostaria de ver atuando sobre a sensibilidade dos espectadores protagonistas, cuja força estivesse fundada em valores femininos ou infantis, como a fragilidade e a imaginação.

Utopia? Sim, ele sabe o grau de dificuldade da tarefa que se impôs. "Não concordo que a ambição seja sem tamanho, mesmo porque não creio que seja só minha, nem eu daria conta sozinho dela. Não é a fundação de outra mitologia, mas sim uma procura por colocar à luz os valores e as imagens femininos soterrados por cinco milênios de tradição patriarcal. Não é fácil, é certo. A mitologia das culturas agrárias matrilineares do neolítico não foi escrita e muito dela se perdeu e foi modificada e usurpada pelo patriarcado", diz Abreu.

Mas encontrou um grupo disposto a iniciar o que promete ser, para Abreu, uma longa aventura. E na noite de quarta-feira, às vésperas do feriado de Semana Santa, o Estado foi até São José dos Campos acompanhar a estreia de Um Dia Ouvi a Lua, texto em que esse autor experimenta a inversão dos valores do ‘macho adulto branco sempre no poder’, a partir das narrativas de três composições muito conhecidas do cancioneiro popular brasileiro (veja abaixo) recriando-as do ponto de vista feminino.

Ritos. A história da primeira canção, Adeus, Morena, Adeus, do violeiro que prefere seguir errante a casar-se, é abordada do ponto de vista das crianças que observam ‘a louca da estação’, a mulher presa ao passado. Não há ‘virada de jogo’, o que o autor expõe é a dor causada pelo cumprimento do ritos masculinos, não só no casal, mas também no pai cumpridor do dever de ‘surrar’ a filha. Na segunda, Cabocla Tereza, a mulher igualmente não escapa de seu fim, mas ainda que ‘morta’ ela aparece altiva, ganha voz e conta seu trágico fim de seu ponto de vista, com seu matador já transformado em penitente. E é só na última história, Rio Pequeno, que a intervenção vem forte.

A menina sai da casa do pai no cavalo do amado, mas no caminho observa a violência masculina na forma de esporear o cavalo e foge, não por acaso, para o mato. Ali faz sua individuação. O homem a reconquista não pela força, mas justamente por ‘deixar escapar’ sua fragilidade.

Pouco antes de subirem ao palco para cantar essas canções numa roda de viola - espécie de prólogo de Um Dia Ouvi a Lua -, os intérpretes preparam-se diante do espelho no camarim do Sesc de São José. É evidente o entusiasmo das quatro atrizes e dois atores da Cia. Teatro da Cidade, fundada e dirigida por Claudio Mendel, que comemora 20 anos de existência e acaba de ganhar de presente da irmã de Andréia Barros, uma das atrizes fundadoras, uma espaçosa sede na cidade.

Um Dia Ouvi a Lua é uma criação especial de aniversário. Há dez anos, Abreu havia escrito um dos maiores sucessos da companhia, Maria Peregrina. Daí o convite para ele escrever o texto de um projeto apoiado pelo Programa Estadual de Apoio à Cultura (Proac) e intitulado Universo Caipira - As Histórias Que o Vale Conta. "É aquela máxima de que a gente pode falar ao mundo a partir de nosso quintal", observa Mendel.

O grupo convidou ainda para a direção do espetáculo Eduardo Moreira, ator e diretor fundador do grupo mineiro Galpão, o premiado Leopoldo Pacheco para criar figurinos e cenografia e o compositor Beto Quadros para a direção musical e preparação dos atores. Havia um desejo de dar um salto de qualidade. "Se a gente repete o que deu certo, vira fórmula", diz Mendel. Mas não esperavam tantos desafios.

Beleza. Abreu trabalhou em processo colaborativo, ou seja, os atores criavam cenas e ele escrevia o texto aos poucos, a partir do material proposto. Porém, como ponto de partida, entregara um canovaccio, um argumento, já com a proposta da inversão sobre as três canções. "Eduardo Moreira propôs trabalhar a partir de brincadeiras de crianças, ideia que Abreu pegou com rara felicidade", diz Mendel. A beleza visual do espetáculo, a ambientação sonora, a delicadeza do canto (que vem até a capela num dado momento e chega a ser realizado a três vozes) e a bem-sucedida apropriação da prosa poética de Abreu mostram que o grupo atinge novo patamar de aprimoramento com esse espetáculo. Depois de circular pelo interior de São Paulo, deve chegar no segundo semestre à capital.

"Ao abandonar a trajetória do herói, eu abandono também uma forma dramática tradicional, mas a forma dessa ruptura ainda não sei qual é. Estou flertando com o teatro nô. Este espetáculo tem muito de inspiração do nô, não o nô formal, mas da essência dele." É conferir esse e aguardar os próximos.

Programação

Quinta, 16, 20 h

Centro Cultural Municipal de Taubaté

Praça Coronel Vitoriano, 1, centro

Dia 29, 20h30

Teatro Municipal de São Sebastião

Rua Altino Arantes, 2, centro Histórico da cidade

Dia 30, 20h30

Auditório de Paraibuna

Praça Monsenhor Ernesto A. Arantes, 64, centro

Dia 7/5, 20 h

Auditório Maristella de Oliveira

Rua Santa Cruz, 396, centro, Caraguatatuba

Leia a íntegra das três letras:

Adeus Morena, Adeus

Piraci / Luiz Alex

Na casa de Mané Pedro


Foi numa festa de São João


Cantei moda de viola


Cateretê lá do meu sertão


Toada paraguaiana


De mexê no coração


Eu fiz as véias chorá


E as moça senti paixão.


No termina essa festa


Eu vim s´imbora e deixei alguém


Saí tocando viola


Pra estrada afora como ninguém


Quando eu cheguei na estação


Que eu ia pegá o trem


Ouvi uma voz me chamando


Que queria vim também.


Menina tenha paciência


Vorte pra casa e vai com seu pai


Eu sigo pra muito longe


Eu pego o trem e vou pro Paraguai


Não levo você comigo


Porque isso não se fais


Bis (Adeus, morena, adeus; adeus para nunca mais)

Cabocla Tereza

Raul Torres e João Pacífico

"Lá no alto da montanha


Numa casinha estranha


Toda feita de sapê


Parei numa noite a cavalo


Pra mór de dois estalos


Que ouvi lá dentro batê


Apeei com muito jeito


Ouvi um gemido perfeito


Uma voz cheia de dor:


‘Vancê, Tereza, descansa


Jurei de fazer a vingança


Pra mór do meu amor’


Pela réstia da janela


Por uma luzinha amarela


De um lampião quase apagando


Vi uma cabocla no chão


E um cabra tinha na mão


Uma arma alumiando


Virei meu cavalo a galope


Risquei de espora e chicote


Sangrei a anca do tar


Desci a montanha abaixo


Galopando meu macho


O seu doutô fui chamar


Vortamo lá pra montanha


Naquela casinha estranha


Eu e mais seu doutô


Topemo o cabra assustado


Que chamou nóis prum lado


E a sua história contou"


Há tempos eu fiz um ranchinho


Pra minha cabocla morá


Pois era ali nosso ninho


Bem longe deste lugar.


No arto lá da montanha


Perto da luz do luar


Vivi um ano feliz


Sem nunca isso esperá


E muito tempo passou


Pensando em ser tão feliz


Mas a Tereza, doutor,


Felicidade não quis.


Pus meu sonho nesse oiá


Paguei caro meu amor


Pra mór de outro caboclo


Meu rancho ela abandonou.


Senti meu sangue fervê


Jurei a Tereza matá


O meu alazão arriei


E ela eu fui percurá.


Agora já me vinguei


É esse o fim de um amor


Esta cabocla eu matei


É a minha história, doutô.

Rio Pequeno

Tonico e João Merlini

Eu arriei meu cavalo quando tava escureceno


Pra roubar uma moreninha da banda do Rio Pequeno


Eu cheguei na casa dela meia noite mais ou meno


Ela já tava esperando nas hora que nóis marquemo


O seu cabelo briava, moihadinho de sereno


Fui chegano perto dela, um bejo de amor troquemo


Eu te amo moreninha de quando se conhecemo


Dizem que o amor não mata, de paixão eu to morreno


Por você eu tenho penado, minha vida era sofreno


Eu dormino, variava, no sonho eu tava te veno


Na hora que nóis partimo sorrino ela foi dizeno


Nas que cavalo ligeiro, que as ferrage vai bateno


Este é meu baio tostado, já sabe o que eu to fazeno


O macho tava réivoso, no freio tava mordeno


Pois ele ta adivinhando que vai posá no sereno


Ela perguntou o destino, eu já fui esclareceno


Nóis vamos pra Mato Grosso, ninguém mais fica sabeno


Pra gozar o nosso amor, que ha tempo nóis vem sofreno


O zóio dela encheu d'água, despediu co'a voz tremeno


Adeus, casa dos meus pai! Adeus, chão do Rio Pequeno!

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